Missa das Almas

matrizSão João del-Rei ficou conhecida como terra onde os sinos falam uma vez que durante décadas foram usados para avisar as pessoas dos mais diversos acontecimentos, desde a chegada do Natal e outras datas religiosas, até fatos corriqueiros como nascimentos ou incêndios na cidade.

Os repiques foram criados pelos sineiros com base em um conjunto de regras litúrgicas ainda no período colonial e sobreviveram graças à tradição oral e cultural de seu povo.

Certo dia, a Senhora Virgínia Cabral acordou com as badaladas do sino menor da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, indicando aos fiéis que estava quase no horário da missa das cinco.

Assustada por ter perdido a hora, a idosa, ainda com muito sono, vestiu-se correndo e saiu às pressas em direção à Igreja, para que não perdesse o começo da celebração.

Em meio ao seu vestido longo e preto de eterno luto pelo marido que falecera anos antes, sempre carregava o rosário, que segurava com firmeza enquanto ia rezando pelas ruas da cidade.

Altar da Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar (ou Matriz do Pilar).

Altar da Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar (ou Matriz do Pilar).

Chegando à Matriz, sentou-se para continuar suas orações. Com a vista muito cansada pela idade, não reparou nos rostos que a cercavam, só percebeu que a igreja estava mais cheio que o de costume e o que o padre se movia com uma leveza incomum no altar-mor.

Quando os sinos voltaram a soar, dessa vez indicando as horas, Virgínia começou a contar mentalmente as badaladas. O sino deveria ecoar apenas cinco vezes, mas para seu espanto, não parou de tocar. Foram doze demoradas batidas, indicando meia noite.

Ao final, a mulher olhou ao redor agoniada e finalmente conseguiu reparar nas pessoas a sua volta. Rostos que ela conhecia, mas pertencentes a pessoas que já haviam morrido. Todos com o mesmo semblante sereno.

A fina névoa que cobria o local aos poucos foi sumindo e eis que as luzes se apagaram e todos desapareceram, os fiéis, os ministros, o sacristão e até mesmo o padre.

Um silêncio profundo tomou o local. A pouca luz que lhe permitia ver o grande templo vazio vinha da lua e entrava por brechas nas janelas do alto da igreja.

Virgínia virou-se apavorada em direção à saída, mas as portas também haviam se fechado e ela se viu presa e só. Foi então que ela compreendeu que não haviam assistido uma missa comum, e sim uma celebração dos mortos, das almas.

Sem forças físicas ou mentais, a mulher desabou junto à porta, desfalecida.

Já na manhã seguinte, o sacristão chegou para abrir a igreja para o ofício regular e ficou surpreso ao encontrar a idosa caída, ainda sem sentidos.

Virgínia foi levada para casa e ficou doente por dias. Quando finalmente voltou a si, contou o que havia se passado e, para seu espanto, ninguém havia sequer ouvido o sino na noite em que tudo aconteceu.

6 comentários

  1. A história é envolvente e a narração é espetacular! A sonoplastia é nota 10! Além disso, é um trabalho importante, pois traduz para a modernidade dos podcast, a tradição das lendas centenárias do interior de minas!

  2. Caramba, Régis… Muito bacana! Achei foda demais! Que bom que aquele projeto que nós começamos a desenhar na faculdade evoluiu nas suas mãos. Te admiro pra caramba, acho você um cara super inteligente e antenado, perceptivo e de fácil acesso. Tomara que o Lendas vá muito, muito longe… Mas, sugiro uma mudança, já que ainda é início: Passe este projeto para “Lendas Mineiras”. Assim você poderá explorar muito mais causos, de diversos locais de nossa Minas Gerais. Forte abraço!!!

    1. Rhonan, devo parte do crédito desse trabalho àquele projeto e todas as conversas que você, André e eu tivemos acerca de podcast, roteiros e tudo o mais. A ideia é mais tarde expandir o alcance sim, mas de uma maneira ainda mais profissional. Ainda vamos conversar sobre isso com calma. Grande abraço!

  3. Receio que não seja lenda mas real. Uma avó minha, mais minha tia e seu namorado na época, com quem se casou meses depois, assistiram uma procissão sobrenatural. Minha avó, já falecida, algumas vezes me contava essa experiência que os três vivenciaram. Só minha tia está viva mas já bem velha. Ela também confirma essa experiência. Quando constataram que aquela procissão “não era coisa deste mundo” ficaram apavorados, apressaram o passo e “picaram a mula”. Poderia relatar com mais detalhes o que viram, conforme me relataram, mas já escrevi demais. Disseram que resolveram seguir a procissão porque parecia uma procissão comum exceto uma estranha luz verde que brilhava no centro da aglomeração dos devotos. Mas a seguir aconteceu algo que fez a eles, que seguiam a procissão, fugirem amedrontados. É, como disse Shakespeare: “Existe muito mais coisas entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia.” Nota: aconteceu pelos idos da década de 50 ou fim dos anos 40, em Itapetininga, São Paulo. E era semana santa.

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